quarta-feira, junho 01, 2005

Ação civil "ex-delicto"


Como se sabe, a condenação de alguém pelo cometimento de um crime gera uma resposta estatal, de regra, consubstanciada na aplicação de uma pena – nec delicta maneant impunita -, os delitos não podem ficar impunes. Há casos excepcionais em que isso não acontece, como, v.g., no chamado perdão judicial (1). O normal, entretanto, é a primeira hipótese. Nesse contexto, superada a fase da vingança privada, à vítima nada mais resta do que aceitar a sanção definitiva pelo Poder Judiciário aplicada contra o seu ofensor.

Na maioria dos casos, entrementes, o delito causa também um desequilíbrio de ordem pecuniária para ofendido ou à sua família. Quem quer que tenha causado gravame a direito de outrem tem o dever de indenizar. Tal máxima encontra estro na parêmia latina neminem laedere, consagrada no antigo Código Civil pelo art. 159 e pelo atual regramento no art. 927. Essa situação é resolvida por meio da chamada ação civil ex-delicto. Nesta, busca-se uma indenização pelo dano sofrido, cuja causa petendi - a causa de pedir - é o ilícito criminal(2). Decidida com trânsito em julgado a questão penal, sendo a sentença condenatória, esta faz coisa julgada em nível do Direito Civil, ficando o ofendido habilitado a executá-la naquela esfera. Aqui a discussão cingir-se-á ao valor da indenização (quantum debeatur), porque a obrigação de pagar já é certa (an debeatur).

Questão que encerrava certa controvérsia, dizia respeito à obrigação dos pais, tutores, curadores, patrões ou prepostos de responderem solidariamente por atos ilícitos – criminosos ou não – praticados por seus pupilos. O art. 1.521 do vetusto CC de 1916 já previa essa obrigação, por isso mesmo, o intérprete menos atento poderia imaginar tratar-se aqui de um caso de responsabilidade objetiva, ou seja, a tão-só condenação dos últimos já imporia a obrigação de indenizar aos primeiros. Engano: era caso de responsabilidade subjetiva(3). A leitura do art. 1.523 espancava qualquer dúvida, ao exigir para configurar-se a responsabilidade mútua, provar-se “que elas concorreram para o dano por culpa, ou negligência de sua parte.” A jurisprudência, depois, tratou de criar uma presunção juris tantum (aceitam prova em contrário) no sentido de inverter o ônus probatório(4). Dito de outra maneira: condenado o dependente - no Crime ou no Cível -, presumia-se a culpa do responsável, com a sua conseqüente responsabilização, a qual poderia ser elidida, bastando provasse este não se ter havido com aquele elemento normativo (culpa ss).

A discussão é oportuna: o novo Código Civil dá um outro tratamento ao tema. Apesar de o art. 932 praticamente repetir os termos do art. 1.521 do velho códice, o art. 933 não deixa dúvidas: “As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.”

Consagrada está, agora sim, à luz desse novel Diploma Legal, a responsabilidade objetiva (5) dos representantes elencados na Lei por seus representados. Aqui se trata de presunção juris et de jure, a não aceitar prova em contrário: condenado o filho, ou o empregado, exemplificativamente, tem o prejudicado a possibilidade de buscar recompor-se no patrimônio do pai ou do patrão, sem poder este se eximir, alegando não ter concorrido para o evento danoso.

No mesmo sentido, à luz do moderno CC (art. 927, parágrafo único, segunda parte), haverá obrigação objetiva de indenizar, baseada na chamada teoria do risco da atividade (6), quando a ocupação do autor impuser ao ofendido um potencial de perigo maior do que o imposto aos demais (7) .


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Notas

1.É o que sucede por exemplo, nos crimes de homicídio culposo (art. 121, § 5º do CP) e de lesões corporais culposas (129, § 8º do CP), quando a pena é de todo desnecessária. Aqui, surpreendentemente, houve um lampejo de visão do fascista Legislador penal de 1940, ao adiantar postulados da chamada Teoria Funcional-Sistêmica (Funcionalismo alemão). Sobre o tema ver ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução: Luís Greco. Rio de Janeiro. Renovar, 2002. Diz o autor, pg. 67, literis: “A terceira das categorias base de nosso sistema – a culpabilidade – é cunhada político-criminalmente pela teoria dos fins da pena. Uma vez verificado que a ação do autor era errônea também do ponto de vista da regulação social de conflitos, falta ainda que o trabalho dogmático responda se um tal comportamento merece pena.”

2.TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Saraiva, 1995, pg. 02.
3.RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Vol 4. São Paulo, Saraiva, 1972-75. Pgs. 62 e 63. “Assim, parece fora de dúvida que o codificador desejou mesmo que a responsabilidade do amo, do comitente, do tutor, do pai, etc. , ficasse sujeita à prova de sua culpa, produzida pelo prejudicado. Conhecedor dos vários sistemas pontificadores da responsabilidade, escolheu precisamente aquele que encarregava a vítima de provar o comportamento culposo não só do causador direto do dano, como da pessoa por ele responsável.” Depois: “O legislador brasileiro, ao corrente dessas duas concepções, preferiu aquela mais conservadora, que adotou no art. 1.523 do CC, ou seja, a de condicionar a responsabilidade do patrão à prova de sua culpa.”
4.MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo penal. 13ª ed. rev. atualizada até 2001. São Paulo. Atlas. Pg. 160, em nota de rodapé, entendia fosse a presunção decorrente de Lei, verbis: “Consoante jurisprudência dos nossos Tribunais, provado o ato ilícito do menor, a culpa in vigilando emerge automaticamente, cumprindo ao pai ilidir essa responsabilidade solidária por qualquer recusa legalmente admitida. Na ausência de causa de exoneração, prevalece a presunção decorrente da lei (art. 1.521, I do CC). Não lhe assistia razão, entretanto, porque o art. 1.523 afastava, ex-lege, a presunção, que foi criação pretoriana.
5.A responsabilização objetiva é recepcionada pela Constituição Federal de 1988, também, no que concerne aos danos causados por prestadores de serviços públicos, ficando, no entanto, resguardado à Administração o direito de regresso, tendo-se havido aqueles com culpa ou dolo. Assim o texto constitucional: “Art.37, § 6º As Pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” Em suma: quando houver dolo ou culpa do agente, cabe à Administração o direito de buscar refazer-se no patrimônio daquele; mas o simples nexo de causalidade gera para Poder Público o dever de indenizar.
6.Enunciado 38 do CEJ.
7.NEGRÃO, Teotônio. Código civil e legislação civil em vigor. 22ª ed. atualizada até 10/01/2003, São Paulo, Saraiva, 2003. Pg. 167.